domingo, 27 de novembro de 2011

“Homens Invisíveis”

Diante da situação de renegação das pessoas em situação de rua por parte da sociedade, Thiago Lobato escreveu o texto abaixo, criando uma narrativa onde expressa o drama desses moradores de rua que sofrem com a invisibilidade e a própria falta de identidade.O texto complementa, exemplificando, o assunto discutido na postagem sobre "Pessoas Paisagem e Invisibilidade Pública".

"O seu olhar vagava distraído pela rua enquanto mastigava com seus poucos dentes restantes um pedaço de pão velho, talvez o único alimento do dia. Chegara a um ponto em que não sabia mais da sua própria história, quem era, de onde tinha vindo, se tinha família. Estranhamente o passado havia se tornado tão incerto quanto o futuro e tanto um quanto outro, não eram alvo de qualquer interesse. Sentado na calçada de uma rua qualquer em uma cidade qualquer, via o tempo passar cada vez mais devagar. Desejava que fosse o contrário, queria chegar ao fim de uma vez, queria poder pular as páginas direto para o final da vida que, sabia, seria triste e solitário. Efetivamente não existia, não era ninguém, não tinha sequer nome. Possuía apenas uma roupa esfarrapada e um sapato velho que achara no lixo. Apesar da razão estar abalada, conseguia pensar o suficiente para sentir, e sentia raiva de Deus, da vida, sentia raiva por ter tido tal destino. Um desperdício é o que fora sua existência. Anos jogados ao léu, era como se não tivesse nunca vivido, mas sim apenas existido em um mundo que o ignorava. Estava ali sozinho, perambulando pelas ruas de um lugar qualquer, sem rumo, sem destino, sem vida. Já não sentia dor física apesar de ser velho, nem mesmo quando era surrado por outros como ele, seus semelhantes só que mais jovens, durante a disputa por um pouco de comida do lixo, ou um lugar sob a marquise de algum prédio durante a madrugada. Via as pessoas passando, aquelas pessoas comuns, que tinham uma vida, uma casa, uma família talvez, aquelas pessoas que nem que tivesse sido por uma fração de momento, tinham sorrido, tinham sentido algo além daquele vazio, daquela raiva e daquele eterno não-ser. Sentia medo, medo que o tempo demorasse mais a passar prolongando o seu sofrimento. Aquele sentimento de injustiça e aquela permanente dúvida de porquê ele, porquê ele e não outros, tinha começado e acabado assim, um nada, só era amenizada quando conseguia, por sorte, juntar moedas o bastante para comprar um pouco de pinga. O álcool lhe amortecia a dor e lhe aquecia o corpo durante as intermináveis noites. Não se abalava mais em viver entre a sujeira, entre os animais, em fazer suas necessidades no chão e limpar-se com as mesmas mãos que comia, sempre fora assim desde que sua falha memória conseguia lembrar. Não conseguia se lembrar desde quando usava os mesmos trajes. Se é que se podia chamar aquilo de trajes, um amontoado de panos furados de tão velhos e tão sujos que emanavam um odor horrível a todo tempo, assim como o seu corpo. Gostaria de um banho, quem sabe. Não sabia os dias, não sabia as horas, não sabia o ano, não sabia nada, assim como era, ou melhor, não era coisa alguma. Não tinha amigo nenhum, nunca tivera. Tinha apenas companheiros de não-existência, outros que, como ele, tinham como única razão de abrir os olhos a cada manhã, estarem um dia mais próximos do fim.
Naquele dia amanheceu defunto, em paz. Encostado na porta da Prefeitura da cidade, causou repulsa a um dos funcionários que lá trabalhavam, que ao chegar e vê-lo ali jogado, perguntou para outro que o acompanhava se ele achava que o sujeito estava morto, no que o outro respondeu que não, pois só podia morrer que algum dia tinha estado vivo.". Thiago Lobato


(Por Camila Dayanne Lira) 

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